A mulher que não sabia amar
— Acho que você não me ama!
Lembro do dia que meu ex marido depositou em minha cabeça essa afirmação.
Prontamente eu refutei.
—Lógico que amo! Você que… (insira aqui qualquer reclamação plausível em um fim de relacionamento)
Não foi uma ou duas as vezes que ouvi essa afirmação e ela sempre me caía como uma acusação absurda, infundada, como se ouvir aquela frase me afrontasse enormemente.
Absurdo alguém duvidar do meu amor! Eu estava ciente e segura da minha capacidade e habilidade em amar e expressar meu amor e só um homem muito inseguro e sem argumentos poderia levantar uma acusação tão leviana.
Sem me dar conta, toda vez que ouvia essa frase eu atacava seu interlocutor, reativamente eu me defendia da reflexão que ele, intencionalmente ou não, me propunha e virava a questão para ele como quem se defende com um escudo de espelhos.
—fale de você! Fale sobre você! Do meu amor eu bem sei!
(Spoiler: eu não sabia)
Depois dessa separação eu me vi aliviada, alguma coisa em mim se expandiu, abriu espaço e eu, que esperava viver um luto, vivi algo que ainda não sei bem descrever. Mas embora tenha sentido um inesperado alívio, comecei a repetir insistentemente sua pergunta na minha cabeça. Será mesmo que eu não o amava?
Como essas goteiras que insistem em pingar na madrugada, eu tentava esquecer a afirmação do meu ex. Durante o dia o barulho da vida camuflava o pingar enjoativo da pergunta, mas no silêncio da noite ou na solidão da pandemia, ela retornava, chata, barulhenta, perturbadora.
Foi a partir dessa perturbação que eu iniciei minhas conversas com a bell… hooks.
Chamo a leitura de seus livros de conversa, pois é assim que me sinto cada vez que me encontro com ela. Ou com suas letras impressas no livro.
Como a aconteceu com a maioria das pessoas, nosso papo se iniciou em tudo sobre o amor e fomos seguindo juntas a cada novo exemplar.
Eu tentava dividir com ela o que me perturbava tanto naquela acusação do meu ex.
Por quê ouvir aquela frase me fazia querer vomitar ataques descabidos ao seu remetente?
Ao ouví-la havia rejeitado o efeito daquelas palavras em mim e, com isso, desviado instantaneamente das perguntas que ela poderia gerar.
Nunca quis saber o porquê dele sentir isso. Não me abri para ouví-lo, para saber o que causava a ele essa impressão de desamor, menos ainda permitia que o tempo da escuta fermentasse alguma elaboração em mim que pudesse interromper as reativas e repetitivas respostas.
Como um elemento tóxico ouvir aquela afirmação me impelia ao vômito das respostas simples e com um jato eu expulsava de mim suas letras.
Quem ele era para questionar o meu amor?
Foi a bell quem me ajudou a perceber a raiz da inflamação produzida por aquela afirmação.
Eu sou uma mulher e as mulheres sabem amar!
Nós escrevemos sobre amor, falamos de amor, reclamamos por amor. Estamos nos grupos e fóruns de discussão onde as queixas e demandas de amor são construídas e debatidas.
Como ele, um homem hétero-branco-cis pode dizer sobre o meu amor? Ou pior, pode se atrever a questioná-lo?
Homens não sabem amar.
Não sabem falar sobre amor.
Eles destroem famílias, corroem mulheres, evitam sentimentos.
Então como ele podia dizer alguma verdade sobre amor?
Eu sabia sobre amor e se eu dizia que o que entregava a ele era meu mais puro e dedicado amor, como ele ousava questionar?
Então passei a dividir em segredo minha angústia com a bell. Eu não ia dividir esse questionamento em voz alta, então as páginas de livro pareciam um bom confessionário para minhas questões sobre o amor e, toda vez que buscava minha amiga, ela me acolhia.
Assim como os homens, eu também cresci em uma sociedade patriarcal onde nossos sentimento são inevitavelmente podados desde a infância. O horror à vulnerabilidade, à conexão afetiva profunda e autêntica me foi ensinada tanto em casa como pelos filmes, livros, novelas e experiências pessoais desafiadoras.
Não é preciso uma aula para aprendermos a não demonstrar uma ampla gama de sentimentos e, mesmo que a gente não queira replicar, a cultura não pede licença e coloniza nossa alma através do ar que respiramos.
Quando bell hooks me ensinou que não bastava ser mulher para saber amar eu achei que iria colapsar, mas o que senti foi um gigantesco alívio.
Não bastava ser mulher, ler livros, conversar sobre afeto, fazer análise… Assim como andar de bicicleta, amar só seria aprendido quando eu tomasse coragem de ralar o joelho me arriscando na insegura arte de amar e, principalmente, assumindo o risco a cada vez que o amor batesse em minha porta.
Desde nova eu sabia dizer o que faltava no amor dos meus pais, eu podia denunciar suas dificuldades e limitações.
Ainda cedo iniciei o processo de análise e poderia descrever em palavras o amor que eu gostaria de ter.
Mas foi a bell quem me ensinou que amar era verbo e que de nada adiantaria falar, ler, saber, denunciar… eu precisaria praticar.
E praticar o amor seria uma das coisas mais assustadoras que já experimentei.
No fundo meu ex estava certo. Eu não o amava. Eu gostava da ideia que tinha sobre o amor, eu gostava de reclamar o amor, de denunciar suas faltas, de usufruir da sua companhia, de planejar uma vida juntos… Mas eu não sabia amar. E se eu não sabia amar, como poderia amar alguém?
Anos de leitura não me ensinaram a amar.
Acreditar que eu sabia amar era um dos prejuízos do patriarcado e acreditar que eu sabia amar melhor do que os homens foi um efeito colateral desagradável de um encontro equivocado com o feminismo sexista.
Estamos todos do lado de dentro dessa sociedade patriarcal, e mesmo que a gente leia e se informe muito mais do que os homens sobre a arte de amar, mesmo que saibamos denunciar suas faltas e falhas, ainda somos ensinadas a evitar vigorosamente aquilo que é a principal base do amor, a vulnerabilidade.
Quando meu ex afirmou que eu não o amava, não soube ler em mim o efeito daquela provocação, mas na verdade eu vinha me defendendo a tal ponto da vulnerabilidade do amor que estava verdadeiramente impossibilitada de amar.
Foi preciso coragem e a companhia da bell, e de tantos outros frutíferos encontros, para que eu pudesse desarmar as muitas barreiras que me afastavam do contato genuíno com as minhas emoções. Precisei aprender a reconhecer minhas emoções profundamente para resgatar a capacidade de avaliar o efeito que o encontro amoroso com o outro produzia em mim.
Tive também que aprender a confiar na minha rede de apoio, na minha sabedoria ancestral e na minha habilidade em renascer após cada trauma (que já havia sido tantas vezes testada), só assim aprendi a estar aberta ao amor enquanto verbo.
Sei que não é fácil aprender a amar em um sociedade tão limitada, competitiva e individualista como a nossa, confiar em si e no outro vem sendo considerado investimento de alto risco.
Em contrapartida, para aprender a amar eu precisei me aproximar da lógica das tradicionais mercearias de bairro, que ainda hoje vendem fiado confiando no retorno da fiel freguesia, e que não se constrange em suspender a conta dos maus pagantes.
Saudade das mercearias de bairro. rs