Biscoito ou bolacha?
Biscoito ou bolacha?
Não sei se já está um pouco fora de moda, mas me dou licença poética dos mais de 40 anos para dizer que amo a expressão “dar biscoito” ou “pedir biscoito”.
Lembro que quando a escutei pela primeira vez entendi perfeitamente o que dizia e pude soltar uma autêntica gargalhada já que sou mesmo uma grande biscoitera. Porém foi me intrigando o fato de perceber a conotação negativa e um certo ar de deboche sobre essas demandas (que beiravam um quase-prazer no exercício explicito da negativa: “ah, ele quer biscoitos por isso? Agora que não vou dar mesmo!”).
Como diria Lacan, toda demanda é demanda de amor e no caso dos biscoitos essa demanda fica ainda mais evidenciada, mas o ponto que vem me intrigando é sobre o por quê do incomodo quando nos deparamos com alguém que assume a posição de pedinte em relação aos nossos afetos?
Nos primórdios da nossa relação com o outro a demanda de biscoitos já se encontrava presente. Eu gosto de brincar com a ideia de que bebês são naturalmente sedutores pela simples condição de que, sem biscoitos eles morrem.
Quem nunca se deparou com a angústia de acudir um bebê que acorda mil vezes à noite e que, no auge da exaustão, se pegou planejando uma fuga, abandonando o pequeno na porta mais próxima ou agradecendo aos céus por ter colocado rede na varanda para que se torne impossível arremessar o serzinho para longe? Desejar é diferente de fazer, mas nesse momento de puro desespero na solidão da madrugada o pequeno insone te olha nos olhos e dá aquele sorriso faceiro que nos derrete de amor e nos faz retirar energias não se sabe de onde para suportar mais uma ou duas horas acordadas.
Talvez não haja ninguém mais eficiente que os bebês na arte de pedir biscoitos e isso não se dá por eles terem interesses escusos e maquiavélicos, saber sobre sua dependência ao outro os especializa na arte de pedir.
Precisamos do olhar do outro, do amor do outro, do cuidado do outro como um laço que nos garanta a sustentação na vida. Fato é que conforme nos constituímos como sujeitos e vamos adquirindo novos recursos toda essa entrega e demanda voltada ao outro vai diminuindo.
Não precisamos mais chorar, fazer biquinho, sorrir sedutoramente ou imitar o vovô para acessar comida, colo ou um simples copo d’água…
Vamos adquirindo ferramentas que nos tornam um pouco menos dependentes, mais autônomos e responsáveis por atender sozinhos alguns dos nossos desejos.
Porém a autonomia plena nunca será alcançada, algo ou melhor, muitos algos, restam de demanda ao outro e a fantasia de ser uma ilha e se bastar não passa de uma reação imatura à impossibilidade concreta de abrir mão do outro enquanto parceiro de vida.
Recentemente li uma entrevista com uma médica paliativista onde ela dizia como estava sendo cada vez mais comum que seus pacientes peçam ajuda e dicas para envelhecerem sem dar trabalho para os outros, ao que ela passou a responder com muita firmeza:
—você vai depender dos outros! Na melhor das hipóteses você vai depender dos outros por muitos anos então busque ser alguém agradável, crie bons laços e se prepare para isso!
Não só vamos depender como já dependemos hoje, claro que a medida dessa dependência varia conforme as fases da vida, os desafios que atravessamos e tantas variáveis, mas o fato é que precisamos sim do outro para nos sentirmos aceitos, amados, validados e acolhidos.
Quem sabe se na próxima vez que alguém surgir para você pedindo biscoito você não possa avaliar melhor a possibilidade de assar uma generosa fornada?